Autor: Eduardo Cabral, advogado e sócio-fundador da Cabral Associados
Em todo o mundo é possível observar uma forte tendência legislativa e jurisprudencial no sentido da adoção dos chamados negócios jurídicos processuais como forma de estabelecimento de uma cultura da autocomposição de conflitos.Problemas como o alto custo do acesso ao Judiciário e a morosidade das decisões judiciais de solução de conflitos, notadamente no Direito Tributário, são apenas alguns exemplos dos motivos impulsionadores dessa verdadeira revolução na cultura processual e forense.
Esses desafios têm lançado o Direito Penal Processual rumo à adoção da chamada justiça consensual penal em diversas partes do globo, e no Brasil do mesmo modo. Contudo, barreiras dogmáticas, como as relativas à indisponibilidade dos direitos processuais do acusado e a impossibilidade de negociação desses direitos, têm funcionado como contrapeso nessa marcha progressista.
Mas, em nosso entender, a barreira mais dura tem sido a cultural. O Direito Penal tradicional é permeado pela cultura acusatória e inquisitorial o que nos permite afirmar que esses processos de transformação se tornam mais lentos. A cultura acusatória, impregnada dos conceitos de verdade material e contraditório pleno e efetivo, produziu um arquétipo de acusação e defesa calcados na estratégia da contenda e, portanto, do tudo ou nada.
A cultura da consensualidade no direito processual penal , entretanto, tem crescido e produzido, já de há muito tempo, institutos eficazes e positivados no Direito internacional, a exemplo da conformidad do direito processual espanhol, da opportunitätsprinzip* do direito penal alemão, da patteggiamento sulla pena italiana e a plea bargaining construída nos Estados Unidos nacional.
No Brasil temos o exemplo dos arts. 72 e 89 Lei nº 9.099/1995 (Dispõe sobre os Juizados Cíveis e e Criminais), a possível composição do dano por parte do infrator, como forma de obtenção de benefícios legais, prevista no art. 27 da Lei nº 9.605/1998 (Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), a delação premiada inclusa na Lei nº 8.137/1990, artigo 16, parágrafo único, e Lei nº 8.072/1990, artigo 8º, parágrafo único, a colaboração prevista no art. 13 e seguintes da Lei 9.807/1999 e a colaboração premiada prevista na Lei 12.850//13.
Não faltam, portanto, institutos, devidamente postos em nosso direito vigente o que tem impelido o próprio Ministério Público, através do CNMP – Conselho Nacional do Ministério Público, a promover a chamada Política Nacional de Incentivo à Autocomposição no âmbito do Ministério Público encartada na Resolução CNMP nº 118/2014, inclusive, com a criação do Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição – NUPIA pela Resolução CNMP nº 157/2018.
Na prática, entretanto, a realidade é marcada, sobretudo, pela resistência cultural de ambas as partes: acusação e defesa. Não é apenas o órgão ministerial que sucumbe ao arquétipo do órgão acusatório austero, a própria defesa assume a persona do réu negacionista, que sobrepõe o princípio da ampla e efetiva defesa acima da racionalidade processual. Esse cenário se reveste de ares ainda mais densos com a presença do FISCO, que assume a figura do órgão arrecadador vinculado ao mandamento da obrigatoriedade fiscalizatória, vale dizer, arrecadatória.
As possibilidades de aplicação da cultura da consensualidade penal e dos negócios jurídicos processuais no direito penal tributário são, não obstante, muito amplas, inclusive, com relação à própria constituição do crédito tributário durante a investigação criminal.
Apenas para citar uma possibilidade interessante de autocomposição penal tributária, temos o art. 4º da Lei 12.850/2013 que estabelece a premiação para aquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, por exemplo, identificando os demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas, revelando a estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa ou promovendo a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
Conjugando esse dispositivo com o art. 16 da Lei 8.137/90, é possível concluir que o investigado ou o acusado de crime contra a ordem tributária cometido em sede de organização criminosa poderá revelar as práticas criminosas não conhecidas pelos órgãos investigadores e, em sede de autorregulação, promover a recuperação total ou parcial dos tributos suprimidos, negociando, em troca, o perdão judicial ou a redução da pena.
As vantagens são amplas para todos os envolvidos, MP, FISCO e defesa e para a sociedade em geral, inclusive, o Judiciário. Cumpre aos órgãos do Ministério Público e à Advocacia Penal Tributária efetivar a implementação dessa tal política de autocomposição, despindo-se, todos, da cultura, muitas vezes raivosa e irracional da contenciosidade e adotando práticas restaurativas e negociais que sejam eficazes e úteis para a sociedade.
*Tradução opportunitätsprinzip: princípio da oportunidade.
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